sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Eu tenho siringomielia* III


Sarah & bengalas


Meu primeiro contato com Brasília foi entre 1972/73. A siringomielia deveria estar adormecida, algo parecido com aquele conto da Bela......
Como o "Boiadeiro", a música da Legião Urbana, fui em busca de trabalho.
A capital federal engatinhava, comandada pela ditadura, agora remendada pela FSP - Folha de São Paulo - como "ditabranda".
Arrrrrrgh!!!!
Era o tempo do "aqui o sistema é bruto". A qualquer sinal, os verdes olivas estavam nas ruas.
Foi uma passagem relâmpago, que me levou a Posse, Guarani de Goiás e Alvorada do Norte, todas no Norte de Goiás, quase na divisa com a Bahia. Não era minha praia. Chutei tudo pro alto e voltei à origem, convicto de um dia retornar.
Pois, 23 anos depois, de volta ao planalto central.
Com limitações, é verdade, agora com siringomielia, só que também cheio de expectativas com a experiência que aquela oportunidade me traria.
É bom colher pela ousadia do que se lamentar pela omissão.
A "mimi" era fato. O comprometimento da marcha irreversível. Só que minha cabeça fervia pelas possibilidades que se mostravam.
Três episódios, todos ligados à rotina de trabalho, chamaram a minha atenção.
A perna esquerda arrastando cada vez mais e sem potência pra caminhar, cerca de 600 metros, da garagem até o gabinete, no anexo IV, da Câmara dos Deputados.
Na entrada do prédio tinha uma escada de uns oito degraus. Nada de lances altos. Passei a procurar apoio lateral pra descer ou subir o local.
O terceiro episódio foi a dificuldade em usar uma escada rolante entre o Anexo IV e o plenário da Câmara. Não tinha mais firmeza pra entrar ou sair da coisa. O equilíbrio e o passo não chegavam a um acordo. Bobeou? Tá lá um corpo no chão!!!!!!!
, é sério - pensei.
Em 1996, procurei o hospital Sarah. Aceito, fiz diversos exames. Um chamou mais a atenção, o da marcha. Filmaram as quatro formas das minhas caminhadas. É um registro único do que estava acontecendo quatro anos após a confirmação da siringomielia. ( conversado com meu médico pra liberar as imagens desse e de outro exame feito em 2006 e publicá-los aqui).
O médico indicou o tratamento tradicional, a fisioterapia, para fortalecimento dos músculos. Por cerca de três meses frequentei o ginásio e a hidroterapia. Findo o prazo, recomendaram pra continuar a reabilitação fora.
Cheguei até a encarar a recomendação, só que não passou de quatro meses. É difícil conciliar essa rotina com sexo, droga e rock and roll. É preciso optar. Não estava preparado, confesso. Pra mim, naquele momento, ainda conseguindo me movimentar e, principalmente, dirigir um carro sem adaptação ou câmbio automático, em viagens de Brasília a Vitória, e viceversa, era o que importava. Tinha autonomia de ir e vir. As consequências seriam resolvidas depois.
Esta autonomia permitiu, por exemplo, que em 1995 aventurasse num acampamento às margens do rio Araguaia, em julho, quando as águas baixam e formam "praias" de extensas faixas de areia, muito legal, a convite de amigos/amigas de Goiânia. No ano seguinte voltei e tive sérias dificuldades pra entrar e sair do barco que levava até o acampamento, caminhar na areia e dormir na barraca. Foi a minha última aventura deste quilate.
Daí a ter a minha primeira bengala não demorou muito. Aconteceu num lance curioso. Nada de indicação médica ou de fisioterapeuta. Um amigo da turma de Goiânia, Vandinho, consultou outro, Aroldo Márcio, como reagiria ao presente, entendendo ele que a bengala me ajudaria. Aceitei e ele mandou trazer de Nova York. Tinha o cabo na forma de um taco de golfe e desmontável. Usei por uns oito meses durante 1997. Um dia não resistiu meu peso e quebrou. Não teve outro jeito, não dava mais pra caminhar sem apoio. Comprei outra, mais resistente, minha companheira até 2005.
Eu consegui desenvolver uma razoável técnica na arte de cozinhar, principalmente pratos com frutos do mar. Em algumas ocasiões de preparação de almoço/jantares, só mais tarde descobriria ponto de queimadura nas mãos. Assim começou o processo de perda da sensibilidade, outro tipo de manifestação da siringomielia.
O cerco se fechava.
A história continua.

*A siringomielia é uma doença na medula. Ela dilata o canal central, criando uma cavidade que pode prejudicar a circulação do líquor. Ela se desenvolve lenta e progressivamente, afetando membros inferiores e superiores, provocando enrijecimento e perda da sensibilidade, além de dor de cabeça, problemas neurológicos e espasmo. Cada caso é um caso. É rara. Não tem cura. É preciso conviver com ela.
Outras informações no http://siringomielia.blogspot.com, em espanhol.